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Qual vida importa?

Atualizado: 6 de jun. de 2020


Imagem: Arte de Angelo Arede


As vidas negras importam? As vidas das mulheres importam? As vidas das trabalhadoras e trabalhadores importam? As vidas indígenas importam? As vidas LGBT’s importam?

Temos acompanhado nos últimos dias revoltas por todo o mundo, propagadas pelas redes sociais, em reação não apenas a um acontecimento, mas a séculos de opressão às negras e negros. O estopim para as revoltas que eclodiram nos Estados Unidos foi a morte de George Floyd, americano negro de 46 anos que foi morto por um policial branco, como um “mentiroso” punido em uma Berlinda¹ ou um escravo “desobediente” no tronco. As manifestações e revoltas anti racistas que eclodiram após o caso não se limitaram aos EUA. Aqui no Brasil estamos sendo bombardeadas e bombardeados por publicações e # nas redes sociais defendendo que as vidas negras importam, ou, #blacklivesmetter.


Vejo na minha timeline das redes sociais várias pessoas postando “Como ser anti racista”, “como ser antifascista”, “atitudes para ajudar na luta contra o racismo”, mas diversas delas simplesmente fecharam os olhos e ouvidos quando frases como: “Ele merecia isso: pau-de-arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também”², do atual chefe de Estado do Brasil, circulavam. Ah, mas ele disse também que a segurança seria sua prioridade! Mas, como efetivamente ele faria isso? “O policial entra, resolve o problema e, se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado”.


Tantas pessoas aparentemente indignadas, e com razão, com o caso (nada isolado) de George Floyd e fico me perguntando onde várias delas estavam quando Marielle foi morta, dentro de seu carro, a tiros? Onde estavam quando 80 tiros disparados pelo exército Brasileiro mataram um pai de família na zona norte do Rio de Janeiro? E quando um menino negro de apenas 14 anos foi morto por um policial dentro de sua própria casa? Em 2019 a polícia brasileira matou 17 vezes mais negros que a americana, mas “policial que não mata não é policial”, inclusive polícia brasileira tinha que matar é mais”. Afinal, “Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente.” Não me entendam mal, não quero dizer aqui que estes casos indignam mais ou menos que a morte de George Floyd, mas justamente o contrário. Por que não indignam tanto quanto?


As vidas negras importam? As vidas das mulheres importam? As vidas das trabalhadoras e trabalhadores importam? As vidas indígenas importam? As vidas LGBT’s importam?


As vidas negras importam? Depende de quantos “arrobas”. Porque dependendo não “fazem nada”, “não servem mais nem para procriar”.


E as vidas das mulheres, importam? Ah, pensei que eram fruto apenas de uma “fraquejada”. Inclusive que algumas “não merecem nem ser estupradas”.


Mas e a vida das trabalhadoras e trabalhadores? ah, estão com direitos demais! O patrão tem que “pagar o mínimo possível”, afinal de contas, a economia tem que melhorar não é minha gente? Se isso vai significar precarizar ainda mais as condições de trabalho e expropriar ainda mais de quem realmente produz, do que importa? Ah, e não se esqueçam, as mulheres trabalhadoras… ahh essas devem mesmo receber menos (mesmo que “algumas até sejam competentes”), afinal de contas, ela engravida, não ?


As vidas indígenas importam? Não sei.. talvez seja melhor “ir comer um capim ali fora para manter as suas origens”.


As vidas LGBT’s importam? Pensei que ter um filho gay era “a morte”, que era melhor “morrer num acidente do que aparecer com um bigodudo por aí”. Mas não preocupe, afinal, se ”o filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele”


Voltando à questão inicial.. onde andavam várias dessas pessoas tão indignadas com a opressão racial, com o fascismo? De algumas ouvi dizer que precisávamos mudar.. que no Brasil a economia não andava nada bem, e talvez algo “novo” poderia definitivamente levar o Brasil para frente. E ah, o Brasil, está acima de tudo não é mesmo?


É, mas calma, “Brasil acima de tudo” possui seus limites. “Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias têm que se curvar às maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem”. Mas às custas de quê, ou melhor, de quem? Da classe trabalhadora, óbvio. Dos negros e negras, das mulheres, LGBT’s, as (os) quais têm sua força de trabalho ainda mais explorada.


As vidas negras importam? As vidas das mulheres importam? As vidas das trabalhadoras e trabalhadores importam? As vidas indígenas importam? As vidas LGBT’s importam?


Desde que não atrapalhem a boiada a passar...


Me perdoem as ironias, mas em uma sociedade na qual a produção é pautada na exploração do ser humano pelo ser humano, na reprodução dos indivíduos em suas capacidades enquanto forças de trabalho e não de sua humanidade, nenhuma vida importa mais que a “vida” do Capital.


Ps1.: Apesar de trazer questões particulares do nosso país, não quero aqui problematizar apenas a realidade do Brasil, mas um sistema de produção e reprodução da vida pautado na exploração Capital-Trabalho, o qual engendra e é engendrado por relações de opressão.


Ps2.: Não é também pretensão desqualificar nenhuma luta. Ao contrário, problematizar que ela está para além de hashtags e redes sociais. Para de fato lutarmos contra todas as formas de opressão é preciso atacar a raiz da questão, pois como nos disse Saffioti “não atacando o coração da engrenagem, alimenta-a.”


¹A berlinda era um instrumento utilizado em mercados e feiras na Idade Média o qual visava punir mentirosos, ladrões, beberrões e mulheres briguentas. Era uma placa de madeira, na qual a vítima era presa pelos braços e pescoço, limitando sua mobilidade. No Brasil, o instrumento foi adaptado e usado nas fazendas brasileiras para castigar e imobilizar escravos considerados fujões.


²As falas utilizadas ao longo do texto foram proferidas pelo chefe de Estado do Brasil e retiradas da reportagem da Carta Capital "Bolsonaro em 25 frases polêmicas"


Fontes Utilizadas:




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